sexta-feira, 3 de março de 2017

UFPA participa de pesquisa sobre o Programa Mais Médicos



Publicado na Revista Caros Amigos, Edição 236 /novembro 2016, p 32-34.

Pesquisa de Universidade Brasileiras mostra que o Programa Mais Médicos venceu a batalha contra seus detratores
e oferece saúde básica de qualidade.
O PROGRAMA Mais Médicos (PMM), instituído pela então presidente Dilma Rousseff dia 8 de julho de 2013, venceu o
fogo cruzado entre os que o defendiam arduamente e os que o detratavam sem dó e completou seus três primeiros anos
oferecendo o que é uma das questões mais valorizadas nas demandas sobre a saúde: cuidado na atenção básica e prevenção
a doenças em populações que vivem distantes de assistência médica em todo o Brasil. Os resultados são muito positivos e
mostram que é possível, sim, superar as adversidades inegáveis que o País vive e diminuir a sobrecarga no sistema de saúde
como um todo, garantem pesquisadores de um estudo nacional sobre o programa que tem no estado do Pará o maior
número de cidades como estudo de caso nas atividades de campo.

O “Projeto análise de efetividade da iniciativa Mais Médicos na
realização do Direito Universal à saúde e na consolidação das redes de
serviços de saúde” começou em 2014 e é coordenado pela Universidade
de Brasília (UnB) e, na segunda maior unidade da federação, pela
Universidade Federal do Pará (UFPA). Formado médico e pós-graduado
em Bioantropologia, o professor e coordenador da pesquisa no Pará,
Hilton Pereira da Silva, é enfático quando diz que “esta é a principal lição
que se pode aprender: é possível fazer atenção básica de qualidade, com
compromisso, com dedicação nos municípios do Brasil”. E quando se
refere à atenção básica, refere-se a cuidados imediatos que podem evitar
que um acometimento simples evolua para uma doença mais complexa;
refere-se ao controle de vacinação; refere-se à prevenção da gravidez na
adolescência e de doenças sexualmente transmissíveis; refere-se a
orientações sobre como lidar de forma saudável com a água, o esgoto, o
lixo e os animais domésticos. É atuando de forma eficiente nesta etapa
que se pode ajudar a população a ter mais qualidade de vida e diminuir a
sobrecarga sobre todas as outras fases da atenção à saúde, seja nas
próprias unidades de saúde, seja nos pronto-socorros e hospitais.
Dos mais de 14 mil médicos associados ao programa para atuar no país, 513 estão fincados nesta parte da Amazônia brasileira, oferecendo assistência primária a 110 dos 114 municípios do Pará. Para o estudo de caso, foram escolhidas oito cidades e, entre os critérios para escolha, esteve o fato de o município ter a menor razão entre médico e habitante e um número absoluto de médicos menor do que cinco, conforme dados do Conselho Federal de Medicina (CFM)/ Demografia Médica/2013, além de ser representativo do cenário rural e urbano da região. Assim, os nove bolsistas com formação na área da saúde coletiva estiveram nas cidades de Aveiro, Bujaru, Cachoeira do Arari, Curuá, Jacundá, Limoeiro do Ajuru, São Sebastião da Boa Vista e Tracuateua. Juntas, estas oito cidades somam uma população de mais de 200 mil pessoas, segundo os mais recentes dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). “Uma das coisas que mais me chamou atenção nesse processo foi a habilidade desses médicos de perceber a dinâmica local onde eles estavam inseridos, de perceber toda a cadeia política, administrativa e técnica das unidades de saúde do município”, destaca Hilton Pereira. O bioantropólogo diz que as entrevistas feitas junto a 21 pessoas de cada cidade – entre médicos, agentes de saúde, secretários de Saúde e pacientes – revelaram que os intercambistas têm um agudo senso de observação, perceberam desde as dificuldades logísticas e infra-estruturais das unidades até as necessidades das pessoas, que é o mais refinado. “Eles relatam que as populações carecem de alguém para conversar e interagir no cotidiano delas, dispostas a ouvir e não julgar suas casas e hábitos, de compreender a realidade que as leva a determinadas situações e ter um profissional de saúde com papel ativo nessa realidade”, descreve. Também foi notória a capacidade de os intercambistas fazerem um detalhado diagnóstico situacional, essencial para impulsionar mudanças estruturais. Ou seja, mais que definir com que doença se está lidando e tratar dela – o chamado diagnóstico nosológico –, os médicos se preocuparam em analisar o ambiente que pode ter contribuído para seu surgimento e atuar de modo a evitar que novos casos surjam,
transformando o paciente e sua família num agente de saúde também da sua comunidade. E como parte dessa atuação, os intercambistas também foram sensíveis à oferta de palestras e orientação em outros ambientes da cidade, como as escolas. Do contrário, trata-se a doença e, se as condições responsáveis pelo seu surgimento não forem mudadas, logo vai haver mais incidências, num círculo vicioso sem fim. Neste rumo de atuação, o que se notou foi uma providencial criação de vínculo entre médico e comunidade, o estabelecimento de laços de confiança capazes de nutrir a construção de hábitos saudáveis na localidade. A disposição para o trabalho em conjunto foi outra característica percebida pela equipe de pesquisadores entre os médicos intercambistas. De acordo com o trabalho realizado já por mais de anos, a inserção desses novos atores no sistema de saúde local significou um estímulo ao trabalho coletivo, numa integração com agentes comunitários de saúde, enfermeiros, dentistas, toda equipe fixada na região para bem da própria comunidade. “Esse nível de envolvimento nunca tinha acontecido nesses municípios e a prática de estar na localidade oito horas por dia durante a semana inteira”, compara Hilton Pereira. O mais comum é a presença de médicos a cada 15 dias; de médicos que trabalham por duas horas e vão embora. “A continuidade é fundamental na assistência básica, é um dos pré-requisitos para que as pessoas te reconheçam enquanto profissional dali e que o profissional reconheça as pessoas com as quais está lidando no cotidiano”, enfatiza Ariana Kelly Silva da Silva, bioantropóloga que faz parte do projeto pela UFPA, desenvolveu atividades de campo nas cidades de Limoeiro do Ajuru e Jacundá. Ela confirma exatamente o que o coordenador relatou: “A maioria das pessoas que foram entrevistadas responderam que o programa Mais Médicos é uma iniciativa interessante do governo federal, porque antes elas não tinham acesso a médicos em seus municípios e que os médicos agora lidam diariamente com elas, e isso seria um ganho”. Marta Giane Machado Torres, enfermeira mestranda em Saúde Coletiva pela mesma instituição acadêmica, ouviu
depoimentos muito semelhantes. “A população nunca viu um médico atender daquela forma. As pessoas estão muito, muito satisfeitas, já não esperam mais em filas, não têm que viajar longas horas de barco, pegar mais uma condução em seguida, andar na lama (até chegar a um posto de atendimento)”, descreve a secretária de Saúde do município de Bujaru, Aline Parijós, antecipa que assumiu o cargo apenas em maio de 2015, mas que, mesmo assim, pode afirmar com segurança que doenças simples e muito comuns reduziram significativamente de incidência, como a diarreia na infância. A cidade conta com cinco unidades básicas de saúde e recebeu quatro médicos intercambistas, três cubanos e um brasileiro. “Antes do programa nós tínhamos apenas dois médicos e que já haviam pedido transferência. Agora temos médico cumprindo carga horária, que vai até a casa das pessoas e se dispõe a ir às escolas fazer orientação. A quantidade alta de pessoas com diabetes e hipertensão também motivou bastante o trabalho de prevenção. O número de pedidos de internação só não melhorou porque tem aumentado vertiginosamente a quantidade de acidentes com moto”, descreve. Universidades públicas de outros estados fazem parte do projeto de pesquisa, entre eles Bahia, Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraíba e Ceará. Um ventrículo da Amazônia O desafio da mobilidade é constante e característica da região amazônica, tanto para chegar da capital do Pará até a cidade onde será fixado o médico, quanto para quem já está na cidade e precisa se deslocar por qualquer motivo. Geralmente é necessário combinar de dois a três transportes de diferentes categorias e de longa duração, uma logística exaustiva não só para os pesquisadores, mas para os próprios médicos cubanos, que têm a obrigação de conjugar às suas atividades de assistência à saúde um curso noturno de qualificação por internet, tecnologia que também impõe algumas barreiras em áreas de tão difícil acesso físico ou virtual. E nem sempre essa conjugação de elementos
funciona a contento, porque ainda inclui fatores como variabilidade das marés, inconvenientes com as vias e transportes rodoviários ou especificidades de transporte aéreo. “Para você chegar (de Belém) a Limoeiro do Ajuru é preciso percorrer por rodovia a alça viária e depois tomar uma lancha (na cidade de Barcarena) até chegar ao município. Aos domingos, você só consegue sair com um barco fretado. Então, se alguém tem um problema mais grave de saúde, vai ter de pagar um barco pra ir até a cidade de Cametá, por exemplo, que é um município de referência, apesar de não ter grande infra-estrutura para um caso de um acidente vascular cerebral ou outros casos mais complexos”, explica Ariana. Outro exemplo é a cidade de Aveiro. Para ir da capital até lá é necessário viajar de avião até o município vizinho de Santarém, deslocar-se até o porto e seguir de barco ou lancha, num trajeto que pode levar mais de um dia para ser vencido. Em cidades cravadas no arquipélago do Marajó, como Jacundá, é necessário atravessar a Baía do Guajará de balsa ou navio durante algumas horas, desembarcar no porto Camará e seguir em transporte coletivo privado até o destino. O professor Hilton Pereira reitera que estas dificuldades são comuns em toda região Norte e muito semelhante ao que se nota em estados como o do Amazonas. Os intercambistas, por sua vez, também precisam se valer, em alguns casos, de voadeiras (lancha metálica com motor de popa) para chegar desde suas residências até os locais de atendimento e às escolas que dispõem de internet para dar andamento aos estudos que fazem parte do programa Mais Médicos. Para quem precisa de socorro médico, qualquer minuto é precioso. Se um paciente estiver em Bujaru e precisar de atendimento especializado ou pronto-socorro, tem a opção de viajar de balsa por vinte minutos até a cidade de Inhangapi e de lá seguir por estrada por quase uma hora até Santa Izabel, na Região Metropolitana de Belém. O mais comum, no entanto, é que precisem prosseguir até Marituba ou a própria capital, explica a secretária de Saúde, Aline Parijós, depois de já terem sinalização de leito garantido por parte do sistema administrado na capital paraense.
Até mesmo para executar uma pesquisa como esta há implicações econômicas da multimodalidade que poderiam inviabilizar sua realização, não fosse o compromisso em retratar esta realidade. Por ser mais complexa a logística, sua realização é mais cara. Além de ter de levar em conta a informalidade de muitos desses serviços, que criam barreiras para a comprovação de seu uso na hora da prestação de contas aos órgãos financiadores, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O modo de transporte encarece, explica Hilton Pereira, porque viajar de barco não tem o mesmo custo de viajar num micro-ônibus, num avião ou no mototáxi. E todos esses meios que serão utilizados em uma viagem precisam estar encadeados, ainda que nem sempre seja possível controlar determinadas variáveis naturais ou de caráter humano mesmo. “Enquanto é muito bom dizer que dispomos da Amazônia Legal, da biodiversidade, temos de levar em conta que isso nos impõe uma série de responsabilidades, entre elas justamente atender às populações que estão dispersas nos nossos rios, nas nossas várzeas, nos nossos parques nacionais, nas nossas áreas protegidas, nos nossos quilombos, as populações indígenas e assim por diante”, pondera Hilton Pereira. Levantamento divulgado pelo IBGE em 2010 indica que haviam 6,07 habitantes por quilômetro quadrado numa área de mais de um milhão de quilômetros quadrados, que é a do Pará, estado que sofreu plebiscito, em dezembro de 2011, para decidir se deveria ou não ser transformado em três. O cenário, concorda o coordenador da pesquisa no Pará, de fato não é favorável à ida de médicos para trabalhar no interior do estado, porque os profissionais costumam estar, por exemplo, isolados tanto geograficamente quanto socialmente de outros colegas da área, além das grandes lacunas na oferta de insumos para o bom desempenho de suas atividades. “Não é incomum acontecerem atos de violência (de familiares de pacientes) contra profissionais de saúde, que se veem em situações absolutamente insuperáveis. Tudo isso é parte do processo que a gente precisa vencer na região Norte, a assistência à saúde com condições”, reconhece Hilton Pereira, que, no entanto, também ressalta que a população não pode ser punida com a falta da atenção básica, que pode ser oferecida satisfatoriamente ainda que diante das adversidades, conforme comprova a pesquisa.
Críticas por água abaixo E diante de tantas críticas duras ao programa e especialmente aos médicos cubanos, tornou-se uma questão prioritária à academia saber se era possível oferecer a cobertura de saúde como estava sendo anunciado. Bastam algumas observações sobre documentos da própria classe médica brasileira sobre o programa para saber o quanto foi frontal o embate sobre o Mais Médicos. Em uma carta emitida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e assinada também pelos conselhos regionais de Medicina (CRMs), do dia 4 de setembro de 2014, por ocasião do relatório sobre o primeiro ano de execução do programa, está registrada a posição crítica à iniciativa. Entre as queixas enumeradas, diz-se que “a população, especialmente a das regiões mais carentes, (está) vulnerável à ação de indivíduos sem o devido preparo e qualificação”. Ainda que a formação dos intercambistas seja duramente questionada por entidades da categoria médica, Hilton Pereira faz algumas ressalvas. O coordenador da pesquisa, que foi membro do grupo de acompanhamento do Mais Médicos do ponto de vista da formação, destaca que um dos requisitos para virem ao Brasil é terem o diploma de médicos, documentos que foram reconhecidos por todos os países por onde muitos dos cubanos já estiveram desenvolvendo atividades parecidas com as que realizam no Brasil, como Paquistão, Haiti, Venezuela e Colômbia. “Também a maioria deles tem formação, seja em nível de residência ou de mestrado em Saúde da Família, que não é o caso dos nossos profissionais”, acrescenta. Tentar colocar em xeque o programa com tal argumento nem combina com os resultados que têm sido obtidos. De acordo com os depoimentos dos secretários e secretárias de Saúde dos oito municípios, há um impacto significativo e positivo na situação epidemiológica das cidades e que é notória a queda substancial na demanda por internação hospitalar e na
sobrecarga de pronto-socorros. Por isso se dizem satisfeitos com o Mais Médicos. A continuidade do Mais Médicos ou a forma como isso se dará ainda são dúvidas pendentes de esclarecimento com o novo governo. A pesquisa ainda precisa cumprir sua etapa final de estudos nas localidades, completando três anos de avaliação do programa, ainda que regularmente estejam sendo apresentadas suas conclusões preliminares inclusive ao Ministério da Saúde. Além de garantir que o Mais Médicos cumpriu sua função, Hilton Pereira faz uma emenda: o ideal é que as ações desenvolvidas pelos médicos cubanos e outros estrangeiros possam ser desenvolvidas por profissionais brasileiros. E aqui está outro nó da questão, que é o tipo de formação necessária para este trabalho. “A partir da minha experiência, já tendo passado pela formação médica e ajudado a formar algumas gerações de médicos, tenho acompanhado ativamente a discussão curricular no Brasil e nossos currículos ainda não estão voltados para a atenção básica”, observa. É aí que levam vantagem os cubanos e demais estrangeiros: a maioria tem residência ou mestrado em saúde da família. Por isso não devem ser dispensados pelo governo, interrompendo um processo de assistência que depende de continuidade para consolidar uma mudança estrutural no fluxo do sistema de saúde, conforme enfatiza o professor. O custo de um intercâmbio também não é favorável à economia do País contratante, mas ainda assim é preciso respeitar as mudanças de médio e longo prazo que podem ser alcançadas, especialmente se o programa está dando certo. “Não é à toa que você chama de médico de família, porque ele faz o acompanhamento de gerações e cria laços de confiança. Se a cada interregno você muda esse profissional, vai ter de esperar novo período de readaptações, tempo para conhecer todo mundo, mapear todo mundo, ver como é sua relação com a equipe de saúde e com a comunidade. Essas coisas precisam ser muito cuidadosamente pensadas, para que a gente não tenha algo que comece, acabe e não tenha sequência”, alerta Hilton Pereira, que lembra um bordão muito comum no
Estado: “Eu espero muito que não sejamos a terra do ‘já teve’, como se costuma dizer aqui, porque a ação já mostrou que é eficiente tanto no nosso, quanto nos outros estados”. Apesar das peculiaridades amazônicas, os resultados obtidos até então são muito semelhantes aos que se chegou de um modo geral com a sistematização de informações colhidas nas demais regiões. Resta aguardar para saber como o programa será conduzido pelo governo Michel Temer daqui pra frente e de que modo suas políticas irão impactar o setor de pesquisa, fundamental para orientar a decisões e condutas de gestores públicos. 

ÉRIKA MOHRY É JORNALISTA

Fonte: http://ifch.ufpa.br/index.php/destaques/2953-programa-mais-medicos

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